O gozo e o emprego

Zander Catta Preta
3 min readOct 23, 2023

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Comentei com conhecido de redes sociais que a vida não é trabalho. Quero dizer, é trabalho, sim, mas não é emprego. Tipo, gastar o nosso limitado tempo em uma sala, em baias, em um canteiro de obras, ou numa moto fazendo entregas. A gente faz isso porque tem que comer, morar, vestir, se informar, estudar e tudo o mais.

Ele me perguntou o que gosto de fazer. Disse que gosto de namorar, comer, beber, tomar banho, dormir, ver filmes e séries, ir ao teatro, ouvir música, ler livros, cuidar dos filhos e parentes e jogar RPG com os amigos. Não necessariamente nesta ordem. Nem sempre em alguma ordem. Trabalho — em empregos — para poder bancar os meus prazeres. Desconfio pacas de quem tem gozo no emprego. Digo, principalmente no emprego.

Isto não quer dizer que a gente não possa fazer bem algo. Pelo contrário, creio que quem tem a vida “fora” do trabalho bem resolvida, tende a ser excelente profissional. Exatamente porque tem a perspectiva daquilo que faz em relação ao mundo. É quem pode ter um olhar mais amplo para as coisas da vida e, talvez, medir o impacto de suas ações. É quem tende a dar menos importância às picuinhas e politicagens empresarias. E é quem consegue ter um gozo mais relevante com as coisas do mundo.

Digo, eu acho, né?

Mas alguém pode vir dizer “ame o que você faz que você não terá que trabalhar o resto da vida”. Putz. Como discordo disso. Tipo, em todos os conceitos envolvidos. O trabalho é uma constante na vida. Trabalhamos até ao respirar. Viver é um trabalho constante. Sobreviver é trabalho em escala de centenas de potência a mais. E quando transformamos o gozo em sustento, temos uma quebra psíquica (num ponto de vista psicológico e não de “fada quântica”). O prazer passa a ser a obrigação. A necessidade para colocar comida à mesa, educar os filhos (e a si), pagar luz, internet, aluguel, condomínio, taxas e impostos.

Amigos meus me sugeriam, em meus tempos de aperto financeiro, que eu cozinhasse profissionalmente, que eu “mestrasse” jogos cobrando dos jogadores, que eu desse mentoria às pessoas. Sempre resisti. Para mim, é um prazer tamanho fazer essas coisas todas. Cozinhar, contar uma história interativa, ver que o outro consegue crescer e aprender coisas novas, é um dos meus maiores prazeres na vida. E dos mais constantes também. Seria transformar meu momento de recuperação de energia em desgaste. Principalmente quando não há o retorno necessário.

Pois é isso que diferencia um prazer de vida para um emprego. Esperamos que esse último resolva nossas necessidades de vida, de sobrevivência. Por isso é que dedicamos o pouco tempo que temos de vida nele. Damos um terço (ou mais) de nosso tempo em coisas que — em grande parte — vão do nada ao lugar algum e serão esquecidas em menos de uma geração.

Gosto muito das coisas perenes, apesar de eu não ser. Sou mais diáfano, impermanente, dada a natureza humana. Mas gosto de pensar que meu gozo ficará na memória dos amigos, dos filhos, do mundo.

(trocadilho intencional, claro!)

Deixo a dica do livro do Ailton Krenak, A vida não é útil (https://amzn.to/3rOiMS1), que fala tudo o que quis falar acima com mais relevância e autoridade que eu jamais poderia fazer.

Leiam, por favor.

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